textos

 

Durante, depois e agora
Douglas de Freitas

Em 2016, durante sua passagem por Lisboa, a artista Bettina Vaz Guimarães mergulhou na paisagem em um movimento de deriva, se deixando levar pelas ruas, fluxos e sentidos da cidade. Diferente da maior parte dos visitantes que, ao embarcarem em uma viajem desenham um roteiro para planejar o tempo e conduzir seus passos, ao se deixar levar pela cidade, Bettina se lançou em um processo de estranhamento e reconhecimento. Nossas origens estão lá e, apesar das diferenças na língua, ou nas características específicas de cada cultura, existem similaridades entre as cidades.

Em uma operação de reconhecimento territorial a artista, munida de uma máquina fotográfica, realizou um trabalho de mapeamento através da imagem dos elementos que chamavam sua atenção durante esse movimento de deriva. As formas, a arquitetura, a paisagem, as cores e a luminosidade que aquele novo contexto oferecia propiciaram imagens do cotidiano dessa cidade que depois, além de servirem para entender os caminhos percorridos, definiriam por onde seguiria sua pintura. Nesse novo conjunto de pinturas realizadas por Bettina, a artista dá continuidade a sua pesquisa pictórica onde a cor e a forma são os elementos primordiais. Surge agora aos nosso olhos uma nova paleta de cores que carregam sua origem nas ruas da cidade portuguesa.

São pinturas de composições geométricas onde a articulação de cada forma e cor nos traz de volta ao ato de construir. Nelas se esboçam, através da sobreposição de planos e cores, estruturas arquitetônicas, novas paisagens que deixaram a cidade e passaram a habitar o papel, mas que carregaram na transferência a luminosidade de Lisboa. Remontam àquela paisagem, que agora se estratifica em forma e cor.

Junto com as pinturas surge um outro diário/registro da cidade. Se as imagens serviram de referências para as formas e cores, durante o fazer das pinturas, Bettina criou um diário/arquivo da paleta criada para as pinturas. São pinceladas curtas em tiras de papel que catalogam as cores criadas nos dias de trabalho no ateliê durante a viagem. Agora, esse diário/catálogo se arma no espaço, é apresentado na parede, numa síntese da cor-luz captada e absorvida da vivência em Lisboa.  

Talvez o observador nem tenha o dado de onde partiram aquelas pinturas, tanto as construídas, quanto as pincelas que contam as cores dos dias. Mas ao vê-las, lado a lado, uma a uma, talvez possam remontar a experiência da artista, e uma nova cidade, que ali já não é mais a Lisboa de Portugal, mas sim a Lisboa de Bettina. 

 
 

Realidade natural e/ou realidade abstrata
Por Maria de Fátima Lambert

“Y: Como você já não pinta o natural, pensei que já não o impressionava nada.
Z: Pelo contrário. A Natureza emociona-me profundamente. Só que tenho de a pintar de um outro modo.”1

As obras que Bettina Vaz Guimarães vem realizando, na sequência da intervenção realizada para a Quase Galeria [Espaço T, Porto – Portugal], quando da sua residência artística em Maio de 2014, têm dado continuidade a um trabalho de pesquisa sobre a natureza e essência dos espaços, estabelecendo novas vontades estéticas e configurações plásticas. No caso de realidade natural ou realidade abstrata, tratou-se de um projeto organizado em diálogo com a artista Helen Faganello. Resultou, quer para uma, quer para outra, na concretização de produções específicas, mostrando como um espaço pode ser alterado de forma constitutiva, quase entranhada, transformando-o relativamente àquilo que, quando vazio e despojado, aparenta ser. As determinações de identificação de sítio, seu diagnóstico e mapeamento detalhado e, ainda, a consequente expansão no espaço físico da galeria atravessam-lhe as fronteiras no relativo à sua arquitetura mais quieta. Ou seja, a inserção, após a viagem transcontinental, das unidades/estruturas bi e tridimensionais, designa e institui alterações significativas, alterando a nossa vivência no local. Assim, ficou demonstrando como os dados da perceção visual, táctil, auditiva… que se convertem em razões estéticas que se transformam, extrapolando os limites mais aparenciais de incursões tomadas como possíveis.
“Realidade Natural ou realidade abstrata”, parafraseando o título homónimo do livro de Mondrian, é uma síntese do pensamento de duas vertentes, ainda hoje vigentes na arte contemporânea, atendendo aos conceitos que estruturam linguagens que tomam como desígnio tais consignações, numa deriva atualizada. Qual é a realidade natural e qual a realidade abstrata? Quando uma interfere na outra? E como as determinamos e caraterizamos como tal? Será́ que – de algum modo ambíguo – quase se equivalem? Qual a percentagem de natureza patente na planificação geométrico-abstrata que explicite uma composição que avança sobre a convencionalidade bidimensional, atravessando-se em espessura e volumetria e plasmando-se no vazio do espaço?
Durante quase cerca de um ano, na sequência de uma estadia prolongada em São Paulo, as conversas e sessões de trabalho com Bettina Vaz-Guimarães resultaram na configuração, procedendo de acordo a uma metodologia de trabalho. A partir das consignações esboçadas no Brasil, com sequência nos diálogos via email, iniciando-se a estadia no Porto, o projeto desencadeou-se, confirmando as estratégias de “aproximação”, finalmente transladadas “in loco”.
A partir da análise de montagens de exposições e intervenções anteriores, na sequência de inúmeras conversas e, sobretudo, uma pesquisa acurada que uma e outra desenvolveram, surgiu a deliberação para o projeto in situ de Bettina Vaz Guimarães. Os conceitos fundamentais, que presidiramem e subsidiam a sua obra, permitem concatenações e a projeção de relacionalidades e confrontos, resumidos na seleção de 600 cores de um pantone singularizado que preenchia um rumo, um projeto ascensional do chão até à cabeça do mezanino. Bettina Vaz-Guimarães pensou numa arquitetura interior que adensasse a dimensão dos visitantes, proporcionando-lhes uma perceção inesperado da casa onde se situa a Quase Galeria. A razão antropomórfica é essencial e corporaliza-se também pela policromia sequencial que coreografa sensações cromáticas sistemáticas, movimentando-se entre a instantaneidade e a duração da visão geometrizada, regularizadora da essência da cor.

  • “A natureza, que no seu ser e no seu sentido profundos nada sabe da individualidade, graças ao olhar humano que a divide e das partes constitui unidades particulares, é reorganizada para ser a individualidade respectiva que apelidamos de "paisagem".”2

    A cor está no artifício aberto, disponível para ser reinventada. A cor na sua pluralidade estabelecida que se comercializa para uma prática artística decidida, sob morfologia regularizada e densa.A Natureza estará lá, impregnada de cores, geridas e estruturadas, pronta a ser olhada com astúcia técnica; capaz de ser tocada e querendo ser cativada em imagens organizadas pela invenção da autora e, invariavelmente, repercutindo em cada visitante que a invente. Retrocedendo, sabemos que a Natureza existe per se e que os filósofos pré-socráticos encontraram as suas argumentações fundadas em matérias pulsáteis primordiais – os 4 elementos – para explicar como o mundo surgiu assim. A natureza convoca invariavelmente esses quatro elementos que, em meados do séc. XX, Bachelard organizou em explicitações prioritárias/matérias conforme os diferentes criadores as privilegiam. Os 4 elementos - das cosmogonias ancestrais - foram vertidos na ideia de paisagem arquiteturada, representada quer em palavras, quer em matérias visíveis. Todavia, nem sempre existiu paisagem enquanto conceito e representação intencionalizada. A paisagem paulatinamente tomou posse; foi decidida em termos poéticos; determinou condições de sobrevivência e, definitivamente alastrou. Persiste em rigores e contornos não orgânicos, emergindo nas suas estruturas quase cristalográficas, tal como lhes definiu a ordenação pluricromática, no caso de Bettina Vaz-Guimarães.

    “Por natureza entendemos o nexo infindo das coisas, a ininterrupta parturição e aniquilação das formas, a unidade ondeante do acontecer, que se expressa na continuidade da existência espacial e temporal.” (...) "Um pedaço de natureza" é, em rigor, uma contradição em si; a natureza não tem fracções; é a unidade de um todo, e no momento em que dela algo se aparta deixará inteiramente de ser natureza, porque ele só pode existir justamente no seio dessa unidade sem fronteiras, só pode existir como uma onda da torrente conjunta que é a "natureza".4

    A paisagem abstrata foi disposta em ritmos cromáticos, simples e detalhados. Converteu-se em decisão, carecendo a demarcação de lugar: circunscreve.

    “Ver como paisagem uma parcela de chão com o que ele comporta significa então, por seu turno, considerar um excerto da natureza como unidade - o que se afasta inteiramente do conceito de natureza.”5

    Ser e designar um longo excerto de paisagem abstrata dentro de casa, implica que se reajustem desenhos materializados no tempo-espaço. Implica, portanto, um ato consciente, a deliberação de alguém relativamente a um território que é despossuído, todavia suscetível de ser escolhido. Perante a “panorâmica”, esta veduta que nos é presencializada, questiona-se se estamos perante natureza, se perante paisagem ou se ambas se contaminam, concebendo uma unidade terceira e congregadora de efabulações estéticas e antropológico-culturais (simbólicas). Bettina Vaz-Guimarães estipulou um mapa de estudo de cores a subir através do vazado do mezanino e até à claraboia. As unidades constitutivas de uma casa / habitação são simbólicas e efetivas: desenham-se desde a infância, desfazem-se, desconstroem-se, restringem e tornam-se irreverentes. As paredes desorganizam-se, consoante o design que preside e dirige a ação.“A casa é conceito de síntese que concilia (por vezes) os patamares do individual e do gregário; orienta-se (quase sempre) pela integração entre o interior e o exterior; dirige (com forte razão de sucesso) a reconciliação entre pensamentos, recordações e sonhos; derrota (oh! utopia!) o maniqueísmo judaico-cristão – corpo e alma.As casas prendem-se a um sítio específico, embora existam casas que foram movidas para territórios mais auspiciosos. Foram levadas pela força sobre-humana de pessoas e comunidades. Considero-as: casas-viagem-sobrevivência. Mas, a maior parte das casas prefere uma boa decisão hierática e quieta; tal como se lhes reconhece a estabilidade, em mapas de pormenor e demais topografias.A casa é abrigo ou (apenas) tolera o homem/microcosmos. Deveria ser o ecossistema personalizado e intransmissível de cada um, antes de ser propriedade privada (em consagração sociológica).”A casa é habitada pelas cores que ocupam um pensamento exploratório, empreendido por Bettina Vaz Guimarães, e concretizando-se em estudos sucessivos destinados a espaços escolhidos. Esses desenhos com cor sistematizam uma indagação assim como um reconhecimento do local tomado como “alvo” para intervenção. Os locais trabalhados pela artista permitem uma auscultação progressiva, desenrolada a partir da teorização e abordagem filosófica da cor, sobretudo, fundada em Josef Albers.

    Em Bettina Vaz Guimarães as casas são o continente para abrigar as cores. As cores são escolhidas, concebidas a partir de sequencialidades possibilitadas pela ars combinatória estipulaladora, revendo e prevendo, situação a situação. Entre os estudos destinados aos diferentes tópicos arquitetónicoas existem uma espécie de passagem de testemunho. As cores atravessam os lugares, convertendo-os em simulacros de indagação pessoal exprimida pela sua dinâmica, nos planos de cor racional e intuitivamente vivificados. O vazio está no dentro da casa, não necessariamente, no exterior desse habitáculo. A casa pode assumir-se também como o espaço para alocação de obras artísticas, sendo casa de todos – Espaço T.Rampa de cor que dá continuidade à luz e à cor, emanando da sala; ilusão de um tempo que é polícrono e polícromo (Edward T. Hall): tempo constituído de muitas coisas acontecendo e situações existindo, tantas assim quanto os tempos que se sobrepõem sobre si. São as misturas do tempo.“Se dizemos “vermelho” (o nome de uma cor) e estão cinquenta pessoas a ouvir- nos, é de se esperar que haja cinquenta vermelhos nas suas mentes. E podemos ter a certeza de que todos esses vermelhos serão diferentes.”6

    Enunciem-se alguns tópicos desenvolvidos por Josef Albers nas suas reflexões sobre as interações das cores que potencializem a análise da obra de Bettina Vaz Guimarães:Misturas óticas > perceção e matérias de cor: nenhuma das placas de cartão pinto tem a mesma tonalidade; por mais impercetível que possa aparentar: todas as 600 placas têm cores diferentes; cabe ao espetador conseguir destrinçar a ténue diferença de tom que seja mais alto ou mais baixo do que aquele que se lhe assemelha;Transparência e ilusão do espaço > as cores são espessas e cativas; o ar torna-se denso, pois foi criada uma parede estreita e comprida, onde as cores iludem a curvatura e os pontos de equilíbrio quase tropeçam;Fronteiras de cor e ação plástica > seus detalhes e pormenores tonais concatenados fechados dentro do formato padronizado que uniformiza a posse no espaço, no ar. Afirmam-se as cores no ar, garantindo a sedução do volume espalmado e decidido;

    Relatividade da Cor e suas subtilezas > Apesar dessa firmeza e decisão irrevogável que a sua presença marca no espaço, fá-lo com a maior subtileza, conjugando perceções individuadas e movimentos oscilatórios. Esse jogo percecional toma a dianteira sobre a relatividade e institui um jogo lúdico definível e gozoso.Assim, reforce-se essa ideia de quanto a cor flui e reflui, constituindo um foco secular de fruição, pesquisa, jogo que ainda amais é potenciada quando adquire consistência em espaço físico que albergue gente e propicia o movimento para ver.De dentro da sala da Galeria, focando-se na porta que abre para o Átrio do 1º andar, anuncia-se uma rampa para o infinito, verificando que o caminho é dominado. A rampa de rectângulos de cores que concentram e distendem – sístole, diástole – converte a linha rígida em sinuosa curva que molda o mundo. Assinalam a capacidade de agir sobre o espaço desconhecido, assimilando o conhecimento artístico e encontrando estratégias para comunicar entre culturas que sejam cúmplices e ricas de significados, expandindo propostas a serem mais e mais exploradas, pois geradoras de novas assunções. A criação/conceção artística vive dessas revisitações de uma lembrança singular do artista sobre si, manifestando as suas convicções e assegurando-lhes a genuinidade que atinge os demais, sendo gregária, na unidade disponível para todos.Por analogia, relembro o que escrevi em 1989, a propósito da pintura da portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, texto que regimentou a conferência proferida na Casa de Serralves, em 1988. “A Cor e o movimento confluem para a identidade cenográfica das telas. Movimento ondulatório, fenómenos luminosos, em que a Luz intensa, diluída ou refratada através de lentes imaginárias, se reflete e manifesta.A cor seria um fenómeno natural e elementar para o sentido visual, manifestando-se como todos os outros, pela separação e contrastes, por mistura e reunião, por intensificação e neutralização, por comunicação e repartição…7O mundo é feito de camadas na obra de Bettina Vaz-Guimarães, onde se recorde, talvez, a lucidez memorializada dos Walldrawings polícromos de Sol Lewitt - essa plenitude da assunção ímpar das cores.Concatenadas, afastam-se até a um infinito alto que chega à luz, as cores deslumbrem as conjunturas dos visitantes; apresentam-se visões do mundo, em porções regulares de cores variegadas que agem em complementaridade e saber. A invenção torna visível a ideia de que repetir exige repetir até ser perigosamente celebrada num clamor expandido em direção à luz – neste caso desta casa, da claraboia.
    Maria de Fátima Lambert
    Porto, maio de 2014/abril 2017

    1 Mondrian, Realidad Natural y Realidad Abstracta, BCN, Barral Editores, 1973, p.962 Georg Simmel, A Filosofia da Paisagem, Covilhã, Universidade da Beira Interior, 2009, p.73 Gaston Bachelard, Terra : La terre et les rêveries du repos (1946); La terre et les rêveries de la volonté (1948). Água: L'eau et les rêves (1942); Ar: L'air et les songes (1943); Fogo: La flamme d'une chandelle (1961).4 Georg Simmel, A Filosofia da Paisagem, Covilhã, Universidade da Beira Interior, 2009, p.55 Idem, ibidem, p.66 Josef Albers, La interacción del Color, Madrid, Alianza Forma, p.107 J.W. Goethe, Traité des Couleus, Paris, Triades, 1980

 
 

Cartografias heterotópicas ou processos para a construção de novos diagramas. Bettina Vaz Guimarães
Andrés Hernández

A articulação de operações, a mescla de territórios – espaciais, pictóricos, sensoriais – e a ausência de fronteiras caracterizam as obras de Bettina Vaz Guimarães na exposição da Galeria Sancovsky.

Como resultado dessas articulações, surgem paisagens inéditas, construções fragmentadas e integradas que geram formas, enquadramentos e dimensões, novas percepções que disparam outros pontos de vista, orientação espacial e escalas, levando os planos pictóricos a se transformar em forças de ruptura – desvio da frontalidade perante as obras. O que Frank Stella (1936) chamou de working space: um espaço pictórico que gera uma vontade de entrar e caminhar pela obra, entrar por um lado e sair pelo outro, um espaço em que se poderia viver. Espaços de extensão ilimitada.

O processo de produção de Bettina começa com a execução dos desenhos, que geram inventários de objetos que se desdobram em uma catalogação pictórica e geométrica de recortes e fragmentos a serem expandidos e projetados em pré-colagens experimentais, e isolados de imagens com máscaras que levarão à inserção, ou não, das mesmas no suporte da obra. Entretanto, o resultado é uma colagem autoral de sobreposições cromáticas e geométricas de tintas, ao justapor estruturas semânticas distribuídas a partir de operações de colagens particulares nas quais a distribuição das partes segue procedimentos únicos, homogeneamente articulados. Assim, intensifica a hierarquia dos materiais e do exercício do fazer, resultando em métodos de nomenclatura cromáticos e cartográficos únicos.

Esse tipo de operação com os suportes é recorrente na produção da artista, como em Quartos imaginários, 2015; Ambientes imaginários, 2016; Referências imaginárias, 2015; As casas que me levam, 2015; Interior, 2015; O íntimo, 2015; e Recanto, 2015, nos quais prepara, homogeneamente, a superfície do papel, ao aplicar uma forma-fundo monocromática, uma gestualidade voluntária que orienta e dá controle às forças cromáticas que irão se sobrepor. Um recurso que servirá de fronteira para estabelecer e ressaltar limites, ou mesmo como ponto de continuidade da execução das obras.

  • Esses limites cromáticos, ou sua variação, verificam-se no deslocamento de manchas escuras em séries anteriores, como na série Travessia, 2014, na qual aparece um movimento sequencial, sem direção, entre manchas e estruturas geométricas de diversas intensidades cromáticas, até essas configurações geométrico-cromáticas ocuparem por inteiro o suporte.Aparentemente, há uma preocupação da artista com a tensão entre a superfície e a ilusão (ilusionismo perspectivo), entre os fatos físicos do meio (a tela, por exemplo) e seu conteúdo figurativo e/ou abstrato; isso faz com que percebamos a “planaridade” das obras, antes mesmo de perceber o que elas contêm; mesmo quando a artista insere camadas pictóricas que emprestam um caráter tridimensional a algumas peças, vemos a obra, antes de mais nada, como pintura.Com a inclusão, na exposição, das obras Quartos imaginários, 2015, e Ambientes imaginários, 2016, propõe-se, também, estabelecer uma ponte geradora de um movimento que sugere a reformulação e/ou assimilação de cada componente estrutural e material das mesmas, em qualquer deslocamento do espectador no espaço da galeria.Já as obras Bingo, 2014; Bullying, 2014; e Primeiro passeio, 2014, contam histórias reais e/ou inventadas – entrelaçando vivências com ficção, sobretudo –, e vinculadas ao universo infantil. Irrompem repletas de possíveis referências que, num primeiro contato, podem parecer díspares, ao surgirem rearranjadas em outras relações, mas que vão se saturando e nos impregnando, ao produzirem novos sentidos, atingindo sensações e outros abismos, numa leitura sempre fluida, porém, inesperada.

    As obras de Bettina Vaz Guimarães evocam um movimento ininterrupto, que desafia a bidimensionalidade e realça a função da luz e do espectador; assim como invocam ações sugeridas e inacabadas, onde a familiaridade é fragmentada singularmente para uma assimilação pragmática de uma realidade aparentemente insólita e irreconhecível. Os diagramas, resultantes da junção de talento, suportes e ação, expandem as peles plurais do território estético, concentrando-o em obras de arte conjugadas plasticamente de técnicas e processos inovadores. Estabelecem-se, assim, relações difusas entre os planos das obras; são planos intrusivos, com uma forte intensidade cromática, nos quais elementos geométricos (linhas e formas) estruturam a figuração e/ou abstração.Em Coletânea de elementos, 2016, as imagens são projetadas numa flutuação que, no conjunto, constitui frames de um filme de uma dança corpórea e sequencial, espacialmente repetitiva, que transita por todas as peças e se estrutura como uma peça única.

    O conjunto de obras de Coletânea de elementos está articulado nos detalhes, na perfeição e magistralidade que urde o Tudo; está na eloquência de cada um dos detalhes que faz que o conjunto se sobressaia e que reforça o valor pictórico do Tudo. Assim, a artista configura mapas inacabados nos quais as próprias formas particularizam a linguagem plástica, transformando-a em uma série de grafismos animados. Com isso, Bettina exprime o mistério da forma, que tanto mais se enfatiza e impregna de significados quanto mais as formas geométricas se desincorporam de sua identificação primária.

    São obras que conjuram à sedução sensorial, através de uma ideia onde se mesclam estética e conceito, indissoluvelmente, onde se ratifica que estética é “uma configuração específica” do domínio da arte que precisamos aprender a ler, neste caso, um manifesto em traços de curiosidade e continuidade infinitas.

    Ao incorporar à composição de cada uma das obras um repertório com uma marcada originalidade de operações e elementos conceituais, plásticos e visuais, revelam-se a fascinação e a reação da artista por uma construção estética com uma crescente qualidade artística. Irrompe, assim, uma singular relação estrutural na composição e na representação carregada de simbolismos, mistérios, ao mesmo tempo em que se propõe um enlace de intimidade e reciprocidade nas relações entre imagens. Define, assim, “um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento”.

    Andrés HernándezCurador, professor e produtor
    São Paulo, outono de 2016

 
 

Casulo
Luiz Telles


Bettina é uma artista afortunada. Conseguiu ao longo de sua trajetória um registro escrito bastante preciso de sua evolução na visão de pessoas absolutamente conectadas com a contemporaneidade e com a sua proposta. São eles que assinam os textos do livro que ela lança juntamente com a abertura da exposição. Eu me sinto privilegiado por poder continuar esse registro e escolho fazê-lo de forma menos analítica e mais emocional.

Bettina se lançou no desafio desta exposição com a intenção clara de experimentar. Sem medo de errar, nem de produzir (e como ela produz!).
Parece necessitar de várias salas, continuas e conectadas, para testar o resultado de sua compulsão pela pintura, de sua paixão pela cor. Não importa mais de onde vem a forma - cubos de construção infantis, estímulos externos, artistas que habitam seu jardim de referências - o que importa é que isso vai dar a ela novos motivos para fazer novas pinturas.

Claro que continuam ali as discussões sobre a fragmentação da vida cotidiana, a domesticidade de que falaram Reginaldo Pereira e Kátia Canton, mas dessa vez isso é adereço. Está presente o discurso do repertório pessoal que mencionou Ricardo Rezende, mas menos preocupado com a sua origem e com a identificação de seus códigos.
Mais do que nunca, eu vejo aqui a expansão do prazer pela pintura que apontou Fernando Velásquez.
A vontade é tanta, que a obra tem que sair, mesmo que seja quadrada. O cubo permite reforçar o caminho da pintura, permite mostrar que o assunto importa menos e que é possível se libertar deste companheiro de longa e intensa jornada em benefício de outras discussões, literalmente mais abstratas.
A cor domina, a complexidade aumenta a tal ponto que não resta alternativa a não ser puxar a pintura da parede – agora colorida - e colocá-la em objetos físicos, como se estivéssemos olhando para uma metalinguagem pictórica: vendo cubos, pintados em cubos, dentro de um espaço expositivo que tem também esse formato.

Esse elemento traz um procedimento novo. Quase o caminho inverso de Braque e Picasso. Parece que Bettina sempre pintou seus objetos como se tivesse olhos em todos os lados, e agora ela busca a planificação dos vários espaços construídos na superfície tridimensional de outro objeto. As camadas se achatam. A cor se evidencia.
A grandiloqüência da sua pintura não é só física, como tem sido seus desenhos e muitos trabalhos da sua produção, é algo que mostra um acúmulo interno de intenções, puramente estéticas, puramente sensíveis, quase evangelizadoras. Entre na cor, ela diz. Seja sugado pela explosão de tons, ande em volta de seus fragmentos. Sinta sua presença.

Não viemos aqui para ver a Bettina que escolhe meticulosamente a sua paleta a partir dos ambientes que está pesquisando, mostrando os inequívocos verdes que menciona Moacir dos Anjos, nem a artista que vai construindo seus desenhos com várias folhas de papel. Aqui está uma Bettina visceral, inebriada pela cor e cheia de coragem para se lançar em algo que não sabe ao certo onde vai dar, mas que certamente deixará marcas em sua trajetória.
Acho que o convite nesse momento é para que todos deixem seus filtros na porta, e que olhem o que está sendo apresentado como o novo, o ovo, mesmo que seja quadrado.

 
 

Fábulas da domesticidade
Katia Canton

“Flores de plástico não morrem...”( letra de canção; Titãs )

A obra de Bettina Vaz Guimarães é descendente direta da natureza-morta. A origem do termo natureza-morta vem do inglês still life, que por sua vez é uma adaptação da palavra holandesa stilleven, que se refere a uma natureza parada, inerte, composta de objetos inanimados.
Essa linhagem hereditária surge entre os séculos 16 e 17, particularmente na Holanda, com cenas criadas por artistas envolvendo mesas postas, alimentos, frutas e flores, objetos. Tais escolhas temáticas eram consideradas pouco nobres para a pintura, sobretudo se comparadas aos retratos, cenas históricas e paisagens.

No entanto, é justamente por conta de sua condição mundana-por ser um tema facilmente elaborado dentro dos ambientes domésticos, juntando-se alimentos, garrafas, fruteiras, livros, ou outros objetos--que a natureza-morta se torna tão imprescindível para a arte. Composições feitas a partir daquilo que o artista traz à mão, as naturezas-mortas revelam os mecanismos do fazer artístico. Servem como exercícios de forma, cor, perspectiva, pintura, traço, luz.
Demonstram do que se vive.

A obra de Bettina Vaz Guimarães toma corpo, desde o início dos anos 2000, numa apresentação de imagens afins. Objetos de cozinha, vidros de perfume, detalhes de bicos e roscas pertencentes a bules, garrafas e potes surgem como os assuntos principais de seus desenhos e pinturas.
Em seu trabalho, porém, um deslocamento de sentidos toma corpo. Ali essas imagens mundanas, normalmente relegadas a meros detalhes da existência, ganham uma dimensão inédita. Descolam-se de seus contextos cotidianos, saindo da condição de mero objeto instrumental da vida corriqueira, para adquirir uma tonalidade épica. Nas suas obras cada um dos objetos se torna um verdadeiro monumento à domesticidade.
Assim como as flores plásticas, subvertendo sua origem e condição natural, subordinada à vida na terra, os açucareiros, copos, garrafas plásticas e espelhos da artista se exilam. Saem de uma situação corriqueira, misturada a tantas outras coisas e mecanismos contextuais, para ganhar vida própria. São ampliadas, engrandecidas, suspensas. Tornam-se autônomas e, no processo, se eternalizam.

Os desenhos e pinturas de Bettina Vaz Guimarães têm a consistência narrativa da sinceridade. Alargadas, esgarçadas, ampliadas suas figuras se tornam protagonistas de um jogo de criação bidimensional onde se combinam dimensão afetiva a uma preocupação construtiva.
Quando se encantou pelo desenho e elegeu para assunto os objetos que circundam sua casa, a artista abriu-lhes para o mundo. Liberou cada um deles de suas proporções, contextualizações e cores. Vestiu-lhes com tons em branco e preto e foi buscar na força gestual das linhas uma pesquisa de reconstrução.

No processo, as linhas foram se soltando. Os desenhos se alargaram e passaram a ocupar vários pedaços de papel, unidos em grupos, compondo um mosaico de pinceladas livres. Nessas obras, um coador, uma panelinha, um espremedor, todas as coisas parecem imponentes, libertas de suas narrativas predestinadas. Parecem prestes a encabeçar novas histórias, fábulas da domesticidade.
Nas pinturas recentes, objetos domésticos são novamente recortados e destacados de seus contextos. Nessa condição, eles se multiplicam e ganham cores.
Uma figura se soma à outra, imagens se atropelam e se sobrepõem.
Formas e tons abundam.
Nessa densidade inédita de coisas mundanas, surgem construções pictóricas repletas de nuances e de diferentes vibrações. Muitas vezes as cenas parecem ganhar nova vida. Parecem ter movimento. É como se as telas narrassem fábulas encenadas pelos próprios objetos: a vassoura é que varre, o espremedor é que espreme; o liquidificador é que liquidifica.

Interessante concluir pensando em como esse mundo do feminino, composto por imagens de domesticidade, é milenarmente associado à intimidade e a uma escala de dimensões miniaturizadas. A crítica literária norte-americana Susan Stewart relaciona a miniatura ao discurso do petite feminine, em que a redução das dimensões físicas resulta numa multiplicação de propriedades ideológicas, que conjugam intimidade, nostalgia e a uma ligação com o colecionismo.
(livro On Longing: narrative, miniature, the gigantic, the souvenir, the collection, de Susan Stewart (Baltimore: Johns Hopkins U Press, 1984)
Ao alargar suas xícaras, bules, vidros de perfume, garrafas plásticas e peneiras e ao liberar esses objetos no espaço, Bettina modifica seus destinos. Confere-lhes potência; solta-lhes sobre o branco dos papéis ou as cores das telas, para que possam ser e se fazer arte.

 
 

Entre um branco e um preto inequívocos, verdes, cinzas e azuis
Moacir dos Anjos

Os desenhos de Bettina Vaz Guimarães parecem pertencer, em uma primeira visada, à tradição da natureza morta, em que as coisas do mundo são representadas em repouso e oferecidas a um escrutínio vagaroso do olhar, que as identifica e compara com o repertório de imagens afins que a memória guarda. Eles trazem embutidos, porém, mecanismos que afrouxam esse pertencimento suposto ou que o tornam menos apaziguado.

O primeiro deles provém no próprio movimento rápido do pincel sobre o suporte usado, que faz o papel absorver a tinta de modo desigual, formando densos campos de cor preta em algumas áreas e em outras apenas manchas e riscos ralos. Essa gestualidade apressada, impressa nas formas criadas, provoca, eventualmente, arrependimentos e a consequente vontade de voltar atrás. Não existe, contudo, apagamento possível das marcas e dos traços inscritos no suporte, afirmação de um tempo que flui em uma direção só. Correçoes são feitas apenas por meio da sobreposição de mais outras manchas e riscos ou de construçoes alternativas sobre a mesma superfície trabalhada. Impoe-se, assim, de uma maneira intrínseca à técnica usada, uma idéia de movimento que subverte a aparente imobilidade dos objetos desenhados, ainda que seu reconhecimento possível seja sempre respeitado.

O segundo mecanismo de afastamento de uma tradição assentada é a inexistência de um contexto que situe as coisas reproduzidas em tinta como partes de um cotidiano ordinário. Isoladas de todo avizinhamento a que seus referentes (um bule, um apontador de lápis, um mero frasco) estão sujeitos no mundo de onde são copiados, essas imagens não têm como assentar-se, tornando-se apenas conceitos de tais objetos. São a tinta escorrida e os respingos sobre o papel – também resultados da rapidez com que a mão da artista produz formas – que lhes devolve o peso que o branco vazio do suporte subtrai. Há, finalmente, o agigantamento das figuras em relação à sua escala usual, o qual corrói a noção de proximidade que as coisas desenhadas poderiam evocar em quem as observa de perto.

O ajuntamento de folhas de papel que permite tal expansão de formas é o que também as faz, porém, possuir um centro – o ponto onde as quatro folhas usadas se tocam –, para onde tudo o que está fora e distante virtualmente converge. Situadas entre a contigüidade e a distância do espaço habitado, as imagens criadas por Bettina Vaz Guimarães reclamam, assim, um lugar em uma tradição de representar o mundo que somente as pode acolher quando é por elas mesmo alargada. Evocam, por fim, no campo do simbólico e do sensível, o modo ambíguo com que o apreço, a qualquer coisa ou a qualquer um, se expressa na vida comum, em que mesmo entre um branco e um preto inequívocos cabem verdes, cinzas e azuis.

 
 

Pinturas da Afetividade
Ricardo Resende


Ao ser convidado para exercer o papel de “organizador” da mostra final de 2002, resultado dos cursos oferecidos pelo MuBE, vistos nos últimos anos, me deparei com uma difícil, mas extremamente estimulante, missão. A de avaliar, diante dos próprios alunos, os seus trabalhos, e depois escolher os que decidimos exibir, montando uma exposição onde todos pudessem estar presentes indistintamente, com o “melhor” de sua produção. Foi neste momento que tive a oportunidade de travar contato com a obra da artista Bettina Vaz Guimarães.

Percebia-se naquele grupo heterogêneo alguns que já demonstravam procurar uma forma de expressão bastante própria, em meio à pluralidade de experimentações possíveis que esses cursos oferecem; outros revelavam apenas um potencial a ser desenvolvido e, por fim, alguns que já despontavam em um início de carreira artística, tamanha a qualidade de seus trabalhos apresentados. Bettina era um desses “alunos” que se destacavam pelo que me apresentava e pelo determinismo em produzir sem a ansiedade de agradar, segura do que mostrava.
Pintora sensível e insistente, trabalho quase compulsivo e diário. A primeira impressão que tive é que tratava-se de uma pintura como fonte de prazer de pintar, expressão de sentimentos e desejos íntimos da artista e de nosso tempo. Um universo que tinha no campo minado de suas telas um depositário para o seu arquivo afetivo de imagens e signos do cotidiano.
Tem algo de primitivo em suas pinturas. Ou então, poderia enquadrá-la como uma antropóloga dos signos da contemporaneidade nos ajuntamentos aparentemente aleatórios que faz nas superfícies de suas telas. Como se fossem gabinetes de curiosidades. Os pequenos museus particulares com acervo de arte e arqueologia vistos no fim do século XVIII e início do XIX que contavam a história por meio do acúmulo de objetos.

  • A artista fala de sua memória afetiva pelo coração e tem como meio de expressão imagens de objetos frugais que coleta no cotidiano e compõem suas pinturas como desenhos de observação descompromissados com o preciosismo do traço, e que podem ser desde uma simples e “inútil” garrafa de plástico de água que, de algum modo, Bettina, nessa ação, a disseca na sua estrutura plástica e de significados, até uma cadeira de balanço que resta estática e solitária no meio do campo pictórico de suas telas, exprimindo temporalmente os conflitos do nosso tempo. Uma ação não muito diferente de um botânico quando observa uma planta ou inseto.Sem hermetismo ou intelectualismo que conduzam o seu trabalho plástico, a artista, dessa forma, se manifesta de maneira simples por meio de emoções puras do dia a dia, o universo subjetivo próprio da arte que por sua vez se comunica de maneira objetiva com o público. O resultado plástico desse “exercício” de observação poderia ser entendido como paisagens ou naturezas mortas da afetividade.

    O campo de fundo em cores pastéis quentes de suas imagens é nebuloso, sem muita variação tonal e criam uma “paisagem” desolada e melancólica com suas manchas ralas que, em algumas áreas da tela deixam transparecer traços que foram apagados pelas várias camadas de tintas anteriores.Atualmente, esses tons apastelados cedem lugar para um fundo negro, quase um abismo para seus desenhos que perambulam nas telas. Desenhos que guardam ainda uma rusticidade dos traços “grosseiros” e vigorosos vistos nos primeiros trabalhos, uma decisão puramente pictórica da artista.As naturezas mortas ou paisagens da memória, são formadas pelas garrafas plásticas de água, objetos de cozinha, brinquedos, bibelôs, imagens de santas, vasos de vidros (copos, garrafas, jarros) que possuem algum preciosismo de fatura dando um requinte à tela ou de memória (podem pertencer a mãe, a uma das filhas ou trazidas da casa de algum amigo). A esse universo de objetos se juntam ainda situações serenas do cotidiano, como uma mulher que espera sentada em um banco no meio do nada ou do que seria um jardim; um cachorro que “observa” o vazio à sua frente. Ou seja, as coisas simples que se pode observar na vida daqueles que se permitem à contemplação do mundo.E falar de simplicidade em arte, não é algo muito fácil e aceito.

    Por isso, termino este texto com uma citação da crítica de arte e historiadora Sheila Leirner, por quem tenho muita admiração. Ela tem a medida certa de um crítico. O brilhantismo para um historiador. E é com um comentário seu que me serve para reflexão sobre a minha função nesse momento em que penso na obra de Bettina Vaz Guimarães.“Um crítico não é necessariamente um historiador, pesquisador ou museológo. Para a ciência a subjetividade pode não ser necessária, mas não há crítica possível sem emoção. Por mais objetivo que o crítico deva ser, é o sentimento que o leva a descobrir as palavras precisas e a estrutura do seu raciocínio. Da mesma maneira como é a sensação que o conduz a decifrar os fenômenos da criação e a se interpor como um xamã entre eles e o público. Seja por meio da escrita ou de uma exposição”.

    De certo modo, é assim que penso e escrevo sobre arte, e acredito também, que não há arte possível sem emoção. E é isso que Bettina nos apresenta em sua primeira individual na cidade de São Paulo, em um momento especial em que percebemos ressurgir um novo interesse pela pintura.
    Ricardo Resende
    São Paulo, 29 de março de 2004.

 
 

A dimensão subjetiva do objeto doméstico – ou – o objeto doméstico em suspensão
Reginaldo Pereira, maio de 2008


A artista Bettina Vaz Guimarães desenvolve seu repertório por meio de uma linguagem baseada em naturezas-mortas, representando objetos recorrentes do seu cotidiano doméstico. A escolha dos objetos (apontador de lápis, grampeador, frascos, liquidificador, suvenirs, cadeira, luminária, etc) implica à primeira vista uma noção do ambiente da casa e do possível convívio no seu interior.

Dessa maneira esses utensílios expressariam um “retrato” da artista, contextualizando particularidades do seu modo de vida e da sua intimidade. No entanto ao esvaziar o conteúdo funcional dos objetos em benefício da representação, a obra é dotada de um sentido de suspensão; não temos um retrato nítido da artista. Os objetos representados situam-se no trânsito do afetivo e do banal, da memória e do inusitado, do íntimo e do coletivo.
Em suas pinturas, a justaposição dos objetos com suas escalas alteradas, anima o inanimado - há um estado de alegria anunciada na obra. Reitera a imagem o tempo todo com camadas e camadas de tinta, sem precisar ser preciosa. Já nos desenhos quase monocromáticos de grandes dimensões, há o isolamento de apenas um objeto que flutua sobre o espaço branco do papel modulado, a permitir cada vez mais a expansão da sua escala.

As linhas toscas de cores que insistem em confundir-se com o preto, misturam-se com breves sugestões de luz e sombra, como se buscasse um lugar para assentar o objeto. Por meio do exercício simultâneo entre pintura e desenho, apresenta-nos com suas fronteiras diluídas: uma pintura que se faz quase por desenho, e por outro lado o desenho que reivindica tornar-se pintura.

A obra de Bettina está em constante estruturação, num movimento contínuo sem se fixar uma forma/arranjo definitivo. Há uma atitude afirmativa do mundo e do mundo da arte no seu processo. O exercício contínuo garante o domínio da linguagem, percebemos algo próprio e valioso conquistado nesse percurso.

 
 

A beleza da indiferença
Fernando Velázquez / Setembro 2005


“o mundo é uma instável combinação de fluídos, a forma é um clarão em movimento, uma mancha indefinida em um universo em fuga" /Henry Focillon

Estranhamento. Enigmas, armadilhas. Non-sense.
As obras de Bettina, desafiam as leis da física e do senso comum.
Resultado da confluência de mundos reais ou possíveis com mundos de sonho e imaginação, as imagens nos exigem uma contemplação ativa. Somos nós interatores, a partir do nosso imaginário, que fechamos a obra, ora reconstruindo uma narrativa sugerida, ora pelo simples prazer da navegação desinteressada pelo ícone "ingênuo" e ao mesmo tempo complexo que a artista nos propõe.
Flaneur do seu próprio cotidiano, Bettina resgata o
bjetos comuns e os articula em alguns casos, com seres imaginários, criando um território instável, transitivo, fluído, onde se perdem as tradicionais noções de espaço-tempo.
A construção, a partir do gesto improvisado e da energia que surge de um estado de percepção próprio do artista, faz emergir sugestivas composições.
Trata-se do resgate do olhar atento do nosso cotidiano, valorizando a perspectiva sincrônica. É o olhar do artista que cria um universo de provocações e incertezas resgatando o sentido mágico e transcendental do fazer artístico.
Na era da informação, onde reinam conceitos como fragmentação, multiplicidade, fluidez e não linearidade, os trabalhos da artista sintonizam com o espírito da época.
 

 
 

Fragmentos de um discurso pictórico
Mario Gioia


A obra de Bettina Vaz Guimarães se constroi a partir de relações. Tais elos cada vez mais se assentam em um nível plástico sofisticado e expõem as ambiciosas proposições da artista paulistana. As pinturas, em especial, num estágio maduro de desenvolvimento, provocam o fascínio do olhar. Distintas camadas cromáticas dispostas na superfície da tela se fracionam em retângulos delgados tais quais fitas, por vezes mais agrupados, por vezes mais soltos. As composições vibrantes revelam aos poucos figurações abertas, fundamentadas em objetos cotidianos do nosso entorno, mas cujos contornos fluidos terminam por criar ligações de cor, luz, forma, textura e matéria, sem desprezar os acidentes do processo visual. “Não se encontra expressão naquilo que supostamente são as relações de suas cores. Se eles não conseguem criar relações, podem pegar todas as cores e será em vão. A relação é o parentesco entre as coisas, é a linguagem comum [...]”1, salienta Matisse.
No caso dos quadros da exposição Fragmentos Instáveis (2012), apresentada na galeria Penteado, em Campinas, caixas de costura, de materiais de pintura e de outros usos retratadas em traços inquietos pela pintora mesclam o lado doméstico, intimista, de ateliê, ao âmbito mais público, chamativo, que norteia a disposição de, por exemplo, uma prateleira de loja de armarinhos.
O convívio, então, entre o recolhido e o permeável ganha força por aquilo que Paulo Herkenhoff definiu como “acontecimentos pictóricos”, a respeito da obra de Lucia Laguna, outro grande nome da pintura contemporânea no Brasil. O crítico de arte e curador destaca nos trabalhos da artista fluminense “[...] zonas de pintura processadas mediante a inscrição de signos pictóricos; modos de trabalhar a matéria e a forma, acidentes e vestígios do acaso, pequenas aflições da superfície, pentimenti, vedação e abertura de áreas, cortes arqueológicos das camadas pictóricas e outras operações visuais”2. São questões que também surgem no fazer artístico de Vaz Guimarães e outros pintores. A frisar que tanto Laguna como a paulistana lançam mão das máscaras, estimulando Herkenhoff a citar “vedações” e “cortes arqueológicos” sobre o resultado de tais ações.

  • Dois movimentos podem ser percebidos na atual fase de Vaz Guimarães. Se a plena habilidade da artista faz com que o jogo de relações entre os elementos pictóricos estabeleçam uma certa leveza nas telas, deixando de lado a justaposição algo caótica e excessiva de pequenos acontecimentos e coisas na composição final dos trabalhos, a pintora, concomitantemente, não teme as incursões do plano para o espaço. Essa vontade tridimensional é evidente nas últimas intervenções e nos desenhos de grande escala que produz. Assim, como uma mola propulsora incessante para sua poética, coabitam a síntese de temas, formas e cores _ resultando, na série Caixas, em pinturas nas quais predominam os tons rebaixados, que se encaminham para o cinza, o verde e o azul; este azul por vezes se sobressai, assim como o ocre e o laranja, mas tal destaque apenas sublinha o envoltório nada berrante _ e os empreendimentos desafiadores ao modo de sites specific.Os desenhos se concentram no preto, no branco e no cinza e têm dimensões respeitáveis _ chegam a medir 2.10 m x 3 m, por exemplo. “Há, finalmente, o agigantamento das figuras em relação à sua escala usual, o qual corroi a noção de proximidade que as coisas desenhadas poderiam evocar em quem as observa de perto”, diz o crítico Moacir dos Anjos, curador da 29ª Bienal de São Paulo, a respeito dos desenhos exibidos na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, no ano de 2007.A fisicalidade deles dialoga com o embate vivido por Vaz Guimarães desde sua intervenção no Aluga-Se (2010), projeto coletivo no qual uma típica edícula de residência de tamanho confortável no Alto de Pinheiros, em São Paulo, serve para a artista criar e instalar módulos ( eram azulejos quadrados em papel) retangulares de cor parede acima, que, aos poucos, não resistiam à umidade paulistana e caíam no piso. Esses resíduos pictóricos desconstruíam ainda mais a figura em traços grossos realizada por ela no nascer da obra. O esforço também é claro em projetos feitos na Dinamarca ( "The Dirty and The Bad from Sao Paulo to Svendborg " Museu SAK- Svendborg Dinamarca ). em Campo Grande ( grupo Aluga-se - Marco alugado - Museu de Arte Contemporanea de Mato Grosso do Sul) , colunas formadas por “porções” cromáticas modulares que tomam partido das especificidades das salas expositivas onde foram colocadas, em especial das cores e da luminosidade que preenchem os sucessivos momentos desses lugares.A pesquisa de cores e luzes “desfeitas” teve ponto alto na coletiva Presenças (2011), ocorrida na galeria Zipper, em São Paulo. “O trabalho que tensiona com mais força a linha entre ausências e presenças é a pintura de Bettina Vaz Guimarães, que funciona como o rastro de um acontecimento. Pintada no mesmo local em que está agora exposta, a tela de Bettina registra um histórico da incisão da luz no local. Registra também os móveis que ocupavam a sala que, antes de ser a sala Zip´Up, era um dos escritórios da galeria. Essas mesas e cadeiras são hoje uma lembrança, documentada na tela de Bettina”3, escreve a crítica de arte Paula Alzugaray sobre a peça.Alzugaray enfatiza o aspecto espaço-temporal da intervenção de Vaz Guimarães, um dado essencial para a compreensão de sua obra. Hoje tal característica é crucial para a abordagem de produções importantes de pintura mundo afora. Por exemplo, não é possível dissociar a utilização de fotografias amadoras e de arquivo na robusta trajetória do alemão Gerhard Richter, não se ater à lentidão das paisagens do irlandês Sean Scully e desconhecer os instantâneos de memória afetiva na série “chilena” da paulista Marina Rheingantz. “Pois a arte _ e afinal não vejo outra definição que englobe todas as demais _ é uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo, em materializar de uma ou outra forma suas relações com o tempo e o espaço”4, define o teórico francês Nicolas Bourriaud em texto sobre a “estética relacional” de nomes como Liam Gillick, Rirkrit Tiravanija e Pierre Huyghe, entre vários outros.O comentário pode se estender _ por que não? _ às inconformadas produções pictóricas de Matisse, Laguna, Scully, Rheingantz. E a obra marcada por fragmentos, incompletudes, sobreposições (ora ruidosas, ora harmônicas) e dissoluções de Bettina Vaz Guimarães têm muito a dizer sobre nossos dias.

     

 
 
 
 
Anterior
Anterior

exposições

Próximo
Próximo

publi